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Rio acima

Rio acima

13
Dez22

Nesse tempo

Carlos Ricardo Soares

Nesse tempo até as prostitutas gostavam do que faziam


Havia mais sinceridade nas sombras de cortar à faca


Do que arte de viver em palcos desmontáveis


Entre as esquinas e as ruas movimentadas


Havia uma cumplicidade indisfarçável no ar


Era o tempo de as coisas serem como são


De as personagens quererem ser humanas


Sem precisarem de outra razão.

02
Out22

Metáforas

Carlos Ricardo Soares

Os que fecharam as portas


Deixaram o silêncio de fora


A vadiar penitente


Até que encontrou a chave das fechaduras


E tomou conta de tudo


Antes que as portas se abrissem com o vento


O silêncio saiu


De fora para dentro


E pos-se a vadiar como um rio novo


A que não se chamaria rio ainda


E talvez não venha a ser


Senão metáfora de deus.

05
Jun22

Liberalismo utópico

Carlos Ricardo Soares

As ideias de democratizar a sociedade, democratizar a escola, democratizar a cultura, democratizar a boa vida, democratizar a felicidade, aparecem frequentemente associadas, e não da forma mais correcta, à ideia de que a sociedade, a escola, enfim, tudo, deve seguir um modelo liberal, muito liberal, muito individualista e funcionar sem paternalismos, baseado na autonomia do indivíduo e na utopia da liberdade total.
Associar a ideia de democracia a esta utopia de liberdade é um grande passo para ignorar o sentido e confundir ambas. Democratizar só faz sentido se significar tornar democrático, e tornar ou ser democrático está muito longe daquela utopia liberal.
Aliás, aquela utopia liberal choca de modo irreconciliável com a democracia e os modos democráticos de gestão e resolução de conflitos e de problemas sociopolíticos e institucionais.
Se quiséssemos ser antipáticos, sem deixarmos de ser democráticos, diríamos que, mais frequentemente do que gostaríamos, constatamos a total incapacidade das escolas para promover aprendizagens que despertem e fomentem o espírito crítico e a hermenêutica. Isto é visto como algo estratosférico, para não dizer exosférico.
Os elevados níveis de especialização requeridos por cada área de análise crítica e fundamentada vão sendo atingidos por um reduzido número de especialistas que só se entendem uns aos outros e, às vezes, só a si mesmos.
Ora, a maioria das pessoas não aspira a uma vida de solilóquios ou de intermináveis discussões consigo mesmo embora possa estar a falar para as paredes, que até têm ouvidos.

21
Mai22

Açorda alentejana

Carlos Ricardo Soares

Ao fim de umas horas a pedalar


Por estradas de metafísica


Com matilhas de cães às costas


Olhei para trás e já não conseguia lembrar


Nenhum dos problemas de dogmática ético-jurídica


Com que muitos reis não se depararam


Por possuirem grandes castelos


 


Como se acabasse de me reencontrar


A caminho do sol e da liberdade


E em vez de pensar no xadrez dos anjos


Que me não dava fome


Nem de comer


Nem sombra


Onde viver liricamente


Como sempre sonhei


Uma primitiva sensação


De estomacal entendimento do mundo


De todos os pensamentos confluírem


Numa harmonia marítima libidinosa


Abocanhando pedaços de lagosta frita


Adornados de algas profanas


À vista de especiosos vinhos


Em horizonte de searas saudosas


Açorda alentejana


Fumegando desejos de planície


Inimagináveis


Em alto mar


Como tudo o que o vento levou.

17
Abr22

Mediático não é sinónimo de meritório

Carlos Ricardo Soares

É desmoralizador constatar que a popularidade e a influência e o papel de referencial de valores de inúmeros vultos, que aparecem nos meios de comunicação social, desde pimbas a políticos, passando por ícones das indústrias de lavagem de dinheiro e de fugas aos impostos, até chefes de Estado que apostam tudo na morte e na destruição do alheio, não se deve ao mérito e à bondade do que dizem, ou do que fazem, nem do que representam, mas, pelo contrário, o que dizem, o que fazem e o que representam torna-se socialmente relevante e é seguido por adeptos e imitadores por serem dessas figuras mediáticas e provir delas.

O mediatismo e a visibilidade da popularidade impõe-se como critério de valor e de mérito e não o contrário, como seria de esperar.

E isto é muito preocupante.

Tem muito a ver com a propalada inversão ou crise de valores.

Não é por seguirem valores associados à prática das virtudes de pensar e de ajuizar e de agir, segundo critérios de sabedoria e de prudência e de sã e informada convivencialidade social e cultural, porque isso está fora dos rituais primitivos dos seus correligionário.

Mas o mediatismo confere à ignorância e à grosseria um estatuto social que é seguido por multidões de fanáticos e torna-se exemplo, valor sufragado por muita gente que, à falta de outros critérios ou referenciais críticos, legitima exercer e manifestar o poder de facto que o ruído, as claques e a estupidez dos rebanhos revelam. Como se ser mediático, ou ser bem pago, fosse alguma garantia de idoneidade e do que deve ser imitado e valorizado.

06
Abr22

Agressão, defesa e contra-ataque

Carlos Ricardo Soares

Não conheço maior maldade nem maior perversidade, pela monstruosidade dos intentos, mas mais ainda pela determinação e escolha do poder de causar dano e destruição e morte gratuita, sobretudo desencadeando um fenómeno de violência de imensas dimensões, antecipadamente admitido como possível e desejado e promovido, tendente a abalar os alicerces da organização social e política e económica, sem sequer ter o ensejo de tirar proveito disso, dizia eu, não conheço maior nojo do que alguém iniciar uma guerra.

E é-me tão odioso, tão revoltante e insuportável que alguém o faça que, enfrentar um tal inimigo, se torna o mais nobre e glorioso dos feitos.

Mas, até por assim ser, por a guerra desencadear mecanismos sociais de reorganização e de defesa e contra-ataque, que mobilizam grupos e organizações cada vez mais alargados, devendo atingir a eficácia necessária, desencadear uma guerra é uma decisão de incomparável responsabilidade e gravidade.

De positivo, ou tolerável, não tem nada. Censurabilidade máxima. Intolerância máxima.

Quem inicia uma guerra dá causa e terá que assumir a responsabilidade, não só da guerra que faz, mas também da guerra que lhe for movida. Esta sim, é uma guerra justa, honrosa e valente para os seus militares. E será gloriosa, ainda que não totalmente vitoriosa. Quando alguém inicia uma guerra, inicia uma guerra má, desumana, injusta, odiosa. Quando tocam os clarins dos exércitos de defesa e contra-ataque, o que acontece é uma grande epopeia, de inesquecíveis guerreiros, por uma causa sublime e magnânima, contra soldadesca desprezível, sem sentido de honra nem brio militar, cuja coragem e valentia é despejar explosivos a esmo sobre casas e gente desarmada, sem sequer pensarem nas consequências.

Mas, também por assim ser, quem inicia uma guerra não deixa de o fazer sob os auspícios de uma propaganda que apresenta a agressão como uma defesa ou legítima defesa, ou, no mínimo, de excesso de legítima defesa, para incutir ânimo aos profissionais do tiro a eito.

E isto agrava ainda mais a culpa de quem toma a decisão e dá as ordens com a coragem de quem está à distância, talvez acreditando que, quem começa a guerra pode pará-la quando quiser, como se estivesse num filme violento, em que tudo lhe corre mal e a violência se volta contra si.

E torna muito simples o trabalho de quem tiver de o julgar e de o condenar.

Mas a parte difícil de o combater, por fases, pacientemente, dolorosamente, com frentes e retaguardas sucessivas, sem perder a cabeça, essa parte é a que dá razão à história e pode dar sentido à vida.

Como um problema que não se pode deixar de resolver.

 

26
Mar22

Acordar

Carlos Ricardo Soares
Acordar, tanto no sentido de sair do sono, como no sentido de chegar a acordo. Este acordar, porém, não é viável sem que, previamente, saiamos do sono ou do sonambulismo. O estado de vigília e de consciência parece estar a atingir um estado de alerta e de alarme. Já não nos é possível viver na ignorância dos efeitos, consequências, resultados, que os nossos actos têm nos ecossistemas de que dependemos, porque são efeitos desastrosos e insustentáveis. A nossa relação com a natureza (não humana) que nos rodeia é mais estreita, imprescindível e simbiótica do que a nossa relação com a natureza humana. A natureza, entendida como mãe natureza, mantém com cada um de nós uma relação íntima tão forte e inseparável que se diria sermos um só corpo, não fosse o facto de cada um de nós depender absolutamente da natureza, ao passo que a natureza prescinde absolutamente de nós. E tudo isto tem a ver com o facto natural de, para vivermos, termos de, por diversos modos, tirar da natureza, agredir a natureza, interagir com a natureza, transformar a natureza, utilizar a natureza, mesmo sem darmos muita importância ao facto de estarmos, assim, a ser transformados por ela.
O ponto a que chegou, porém, o poder e a capacidade dos humanos tranformarem e explorarem a natureza, em todos os aspectos da sua utilidade egoística e de curta visão, coloca-nos perante um cenário desolador e desmoralizante de destruição da natureza de que abusamos. E, o que é mais grave, dando-nos conta, sem tomarmos medidas colectivas adequadas a evitar mais destruição irrecuperável e a tentar recuperar ou reparar os danos causados.
As principais vítimas, feitas as contas, são os humanos e isso devia ser um motivo acrescido de especial preocupação em reverter processos de exploração económica e de comportamentos cujas externalidades negativas já foram devidamente identificadas e avaliadas.
Mas os humanos não têm um fértil historial de aceitarem restrições e limitações por causa dos outros.
As democracias aparecem como tentativas excepcionais e não muito generalizadas pelo planeta.
Ainda há quem pense que os problemas da corrida para o abismo ambiental e da destruição da biodiversidade sejam problemas dos outros e continue a espreitar aí mais uma oportunidade para fazer dinheiro.
E há quem não tenha sequer a noção daquilo que verdadeiramente está em causa, tal é o modo como tudo continua a ser vendido e propagandeado, como sempre, como se na nossa função de consumidores residisse alguma soberania individual.
Já não é suficiente invocar os direitos humanos para mover a humanidade.
Aliás, a Declaração Universal dos Direitos Humanos talvez devesse ser simplesmente Declaração Universal dos Direitos, incluindo aí os dos outros seres vivos.
Ainda assim, e pelo que vem acontecendo nos dias de hoje, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é maior afronta e ameaça, para a Rússia ou a China e outros Estados antidemocráticos, que a temem muito mais do que a eventualidade de serem bombardeados.
E é sobretudo neste poder e nesta força dos princípios e do Direito que devemos apostar.
 
10
Mar22

Como só a harmonia consegue

Carlos Ricardo Soares

Quem há-de dizer


Com todas as letras


Para as estrelas


E daí


Obter resposta


Numa língua que não existe


Aplacar em letra morta


O silêncio


Pisar escombros com a planta dos pés


E como antídoto ensurdecer


Com sofismas


Para dores fantasmáticas


Em doses homeopáticas


Diluídas na metafísica


Do maravilhoso aquário


De argumentos


Sem se molharem


Sem afundarem


Patinando artisticamente sobre uma superfície gelada


De postulados cosmológicos


E imunes às forças opostas


Como só a harmonia consegue


Em parcimoniosos compassos


Ou bélicas coreografias


Quem há-de sacrificar


Tudo o que resta


O que importa salvar


Não é a verdade


Nem do que sabemos


Nem do que dizemos


É o que somos


E o que fazemos


É o que as coisas são


Até se tornarem noutras coisas


Que não reconhecemos senão


Na nossa visão


Por mais desculpável que seja


A nossa falta de visão


Por mais que se agigante


O espectro da invisibilidade


Na luta que se encarniça de olhar para si mesma


Como inimiga


Que não pode evitar


Nem vencer


Nem servir de alimento a uma letra


Para não dizer pomba


Morta


Da paz.

03
Mar22

Devia ser proibido mandar fazer guerra

Carlos Ricardo Soares

Devia ser proibido mandar fazer guerra, mandar matar. 

Devia ser mais proibido do que matar. E mais condenável e mais inadmissível. 

Temos assistido a guerras que são impiedosas e desumanas máquinas de trituração às ordens de oligarcas de toda a espécie, detentores de faustosos e imerecidos privilégios, numa posição blindada às explosões e aos estilhaços, a que assistem com estrondoso prazer, entre caviar e champanhe, e imensa droga, pondo e dispondo da estratosfera em que se encapsulam, pela simples razão de não terem poder bastante para mais nada. 
Não temos assistido, nos últimos tempos, a revoltas de escravos, ou da plebe, do povo ou do proletariado... 
As revoluções já não são o que eram. 
Assistimos ao deboche e ao sadismo da guerra como violência exercida por criminosos a quem falta o que não conseguem obter pela violência e que, por isso mesmo, são os mais execráveis e miseráveis demónios em cujas mãos o progresso e o desenvolvimento, de tempos a tempos, não conseguem evitar cair. 
Isto vem a propósito de eu ter pensado na causa das guerras, ontem e hoje. 
Amanhã ver-se-á.
11
Fev22

O dinheiro do diabo

Carlos Ricardo Soares
As árvores não resistem mais

mas não é nisso que eu penso

já fui inocente como a pomba

e pacífico como o ramo da oliveira

voava como só o vento voa

sobre o mar

subia as montanhas

sempre até aos cumes

sem vertigens

e penetrava nas profundezas

sem medo

da escuridão

porque o mundo era o único lugar

que não trocaria pelo céu

que muitos diziam querer trocar

e não faltou quem fechasse negócio

e ficasse com o dinheiro

do diabo.

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